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OPINIÃO: Os pais do menino Bernardo

Durante cinco dias a sociedade gaúcha acompanhou um dos mais tristes episódios de sua história. O julgamento do crime de homicídio de uma criança que, teoricamente, teria prioridade constitucional para o cuidado a ser exercido pela família, sociedade e Estado.

Essa rede protetiva falhou de forma absoluta. A realidade cruel é que Bernardo, com 11 anos de idade, foi vitimado com a perda da própria vida, após anos de abandono e tortura, ainda que a própria criança, em ato sem precedentes, tenha buscado ajuda no Poder Judiciário.

O caso apresentou nuances de várias naturezas, porém chamou a atenção o testemunho da vizinha Juçara Petry, que descreveu o estreito relacionamento e os cuidados que ela e seu marido tiveram com o menino, mesmo sem ter nenhum vínculo de consanguinidade com ele.

Houve relatos da atenção dispensada, do convívio rotineiro chegando até dez dias contínuos, da compra de presentes, do acompanhamento ao menino nos eventos importantes de sua vida, da mútua ajuda nas tarefas escolares e domésticas, das refeições compartilhadas e até mesmo "o dormir no meinho" do casal (palavras de Juçara). Esse verdadeiro lar acolhedor contrasta frontalmente com o ambiente hostil e cruel da residência paterna, onde o menino nem sequer tinha livre acesso e com proibição até mesmo de aproximação à única irmã, com episódios de tortura psicológica e talvez até física.

Na sua triste e passageira vida, Bernardo encontrou junto ao casal que lhe acolhia momentos da verdadeira convivência familiar. O relacionamento afetivo estabelecido entre eles, reconhecido publicamente e absolutamente comprovado no processo criminal, aponta à possibilidade de ser objeto de uma sentença declaratória de filiação socioafetiva, na forma difundida pela doutrina e pela jurisprudência.

Esse tipo de filiação, atualmente, é possível de ser estabelecida na forma extrajudicial, através do reconhecimento voluntário pelos pais socioafetivos junto ao Cartório de Registro Civil, conforme o Provimento 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça, desde que atenda aos requisitos expressos no seu texto. Leandro foi apenas o genitor biológico de Bernardo. Ele encontrou seus verdadeiros pais naqueles que efetivamente exerceram essa função através do cuidado e afeto oferecido. Ao se reconhecer isso judicialmente, o vínculo parental será rompido com relação àquele que jamais exerceu sua função.

O efeito prático desse reconhecimento de filiação "post mortem", com efeitos retroativos, seria a perda de eventual direito sucessório para a família biológica, a fim de que a herança de Bernardo passe para seus verdadeiros ascendentes: a família que lhe acolheu e que ele mesmo adotou como "sua".

A justiça gaúcha deve isso ao pequeno menino morto. E a sociedade também. É o mínimo que se poderia fazer pela memória de uma criança que se tornou um verdadeiro símbolo do dever de cuidado.

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